O enorme terreno abrigava, agora, mais um
supermercado. Por muitos anos havia sido a sede do Clube Hípico de São Vicente.
A intensa vegetação fora substituída por um grande estacionamento e lojas
diversas que atraíam um grande número de visitantes naqueles primeiros dias de
inauguração.
Uma cliente ao utilizar o banheiro, que
exalava, ainda, um forte cheiro de tinta fresca e argamassa, assustou-se ao
notar um enorme grilo tentando esconder-se atrás da curvatura branca do vaso
sanitário. Urinou com certo receio e ficou meditando como aquele grande inseto
ficara preso naquele cubículo. Um local inadequado, frio, revestido de
azulejos, sem saídas e causando, a ele, um pânico constante devido às
repentinas visitas dos humanos.
Ao sair acabou esquecendo a dramática
situação daquele pequenino ser aprisionado em reduto tão adverso. Porém, duas
semanas depois, ao retornar acompanhada de sua filha, esta o avistou. Encolhido
no mesmo local visivelmente abatido apresentando certa palidez na coloração
devido a ausência de raios solares. Estava frágil e abatido embora seu porte
fosse, ainda, robusto para os de sua espécie.
Impressionada a moça comentou com a mãe.
Ao ouvi-la, a senhora surpreendeu-se pelo fato de aquele inseto encontrar-se,
ainda, no mesmo local. Como estaria se
alimentando? Talvez, de pequeninos e raros insetos noturnos? Quanto tempo
resistiria? Pois, sua postura demonstrava total impotência diante da realidade
que o havia tão duramente aprisionado. A jovem, então, decidiu retornar ao
sanitário. Antes disso fez um pequeno cone de papel branco.
Adentrou silenciosamente ao toalete e
imediatamente o avistou. Aproximou dele o artefato cônico. Ao ver aquela peça cilíndrica
e branca as antenas do minúsculo ser moveram-se agitada e desconexamente. Sem
pressa, a jovem aguardou para que a pequenina
criatura fizesse a sua própria escolha.
Após algum tempo, o grilo moveu uma de
suas finíssimas e peludas patas e tateou o cone. Durante o longo tempo de duas
semanas (para ele, talvez, meses, anos...) tinha à sua frente algo novo. A que
isso o levaria? A outro mundo frio e solitário? Porém, era necessário tomar uma
decisão. A mais importante e vital de toda a sua existência. Então, moveu a
outra pata e decidido acomodou-se no fundo
do tubo de papel.
Súbito, sentiu-se elevado no ar.
Primeiramente, notou a ausência do cheiro sufocante de cimento e desinfetantes e
saboreou uma leve brisa juntamente com burburinhos desconhecidos. A expectativa
tomou todo o seu ser. E, de repente, ao passar a porta da saída, o ar da tarde
o envolveu. Seus pelos eriçaram-se e as antenas moveram-se freneticamente e
todos seus olhos e patas tomaram vida e ritmo. Nesse momento sentiu sobre si a luz
do sol. A benfazeja presença dos raios da estrela mãe, agora, o reconstituía
totalmente. Os aromas e as cores do mundo fervilhavam loucamente em suas
antenas.
Sentiu a moça pousar o artefato. Ainda,
atônito, moveu a primeira pata e tocou uma folha de grama. Um estremecimento o
tomou por completo. Demonstrava, agora, uma vivacidade contagiante. Moveu o
segundo membro, aspirou profundamente o verdor do dia e, então, virou-se para a
moça, que o contemplava silenciosa. Deu um novo e pequeno salto para frente e inebriado
observou o seu mundo, então, com um outro impulso repleto de estupenda vitalidade
embrenhou-se e desapareceu na pequena vegetação que margeava a lateral do
armazém.
A tarde, para todos ali, continuou enfadonhamente
insossa e rotineira, porém aquela moça vivenciou
em seu íntimo, para sempre, de forma indelével a sensação de que o cosmos
testemunhou, naquele dia e local, um grandioso momento da Vida.
Vieira Vivo
in Agudas Crônicas
ed. Costelas Felinas - livros e revistas artesanaais
contato com o autor: cacbvv@gmail.com
Comentários
Kedma O'liver ................
maravilhosa descrição, viajei com ele nessa aventura. Vieira Vivo sempre nos brindando com escritos lindos.