Trata-se da história de um homem que perde a memória e aparece perdido numa fazenda na cidade de São Roque de Minas, Serra da Canastra.
Não sou da altura que me vêem, mas sim
da altura que os meus olhos podem ver. (Fernando Pessoa)
I
De cócoras junto ao moirão da porteira, com um
olho perdido no horizonte emparedado e o outro recluso sob um tapa-olho, José
Vazio aguardava o regresso das lembranças perdidas e o caminhão de leite que
levava os latões da fazenda e as crianças da redondeza até a escola, a uns
quinze quilômetros dali. Todos os dias, antes do sol derreter o orvalho, já
estava de pé, coando o café amargo no velho fogão de lenha, que bebia
acompanhado do pão amanhecido. Após a ordenha, apartava o gado, limpava o
curral e, como de costume, selava a mula-mansa com os dois latões de leite,
levava-os até o ponto e ali aguardava as lembranças perdidas e o caminhão
vermelho do senhor Pedro Matias.
Não fora este seu nome de batismo, mas - José
Vazio - não trouxe outro quando chegara à fazenda do senhor João Clemente
apenas com a roupa do corpo e o pó da estrada, três anos antes. Era um domingo
escaldante de outono. O sol já quase se sentava à mesa da cozinha, na hora do
almoço, quando um homem magro, sujo e pálido foi atravessando o terreiro –
parecia até seguir o cheiro do feijão refogado na gordura de porco preparado
por dona Feliciana, - esposa do senhor João Clemente -, e parou no capacho da
porta batendo palmas e a poeira dos pés: “Ô de casa, pelo amor de Deus!
Acode!”, clamou o intruso, chorando. Do lado de dentro, com um lenço branco na
cabeça e um avental xadrez, dona Feliciana aponta a cabeça no final do
corredor, enquanto o homem, em pranto, clamava por misericórdia: “Ô dona, pelo
amor de Deus! Acode! Eu num guento mais!” E antes que
pudesse terminar sua súplica, caiu desfalecido à entrada da casa. Desesperada,
Feliciana grita o caseiro, Argemiro, e os dois correm até a porta para acudir o
velho desmaiado, seguidos pela cadelinha Filó, que cheirava o corpo estendido
no chão como se defunto fosse.
Movidos por um sentimento de grande compaixão,
João e Feliciana Clemente, casados há quase cinquenta anos, acolhem o andarilho
e o abrigaram num quarto vago dentro da própria casa. Parecia loucura, mas não
seria a primeira vez que fariam isso. Argemiro, o caseiro e camarada fiel,
chegara à fazenda em circunstância parecida: bêbado, sujo, passando fome e
frio; pedindo um prato de comida; acabou arranjando um emprego e uma casa para
morar. Mas o próprio Argemiro, talvez na tentativa de esquecer a própria origem
miserável, não aprovava a caridade do patrão, alertando-o do risco de se
colocar uma pessoa desconhecida dentro de casa. “Olha prá dentro docê,
seu moço!”, esbravejou João Clemente, inconformado com a prosa ingrata do
empregado. “Será que já esqueceu como é que chegou aqui, Gimiru?!”, continuou o
patrão. “Mas é diferente, sô
Jão. O infeliz cheira a bicho morto e num tem nem um documento nus
borçu”, justifica Argemiro, tentando mudar a cabeça do patrão. Mas fora
inútil. Diante da insistência de dona Feliciana e conhecendo como ninguém a
teimosia do patrão que tinha como próprio pai, deu-se por vencido: “O senhor
manda, sô Jão.” Arrependido e envergonhado, o caseiro tanto respeita a
decisão tomada que, depois, até ajuda a dar banho e curar os ferimentos do
velho homem, causados pelo sol e pela queda ocorrida no dia em que aparecera na
fazenda.
João Clemente e dona Feliciana fizeram de tudo
para tentar arrancar do pobre homem alguma informação que explicasse a sua
aparição repentina: sua origem, seu nome, sua idade, um telefone de contato,
algum documento que o identificasse. Tudo em vão. A única coisa que descobriram
foi que o coitado, além de tudo, não enxergava do olho direito. Diante da
situação, não querendo que o viajante desmemoriado ficasse ao léu, resolvem,
então, acolher de vez o barbudo misterioso, abrigando-o numa pequena casa aos
fundos da de Argemiro, vazia desde a saída de um dos seus empregados.
E assim começa a história de José Vazio. José,
devido à semelhança com o São José da Sagrada Família que dona Feliciana
mantinha com muita devoção na sua sala.
Vazio, por causa da sua memória: vazia, perdida, obscura.
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Pamela dos Santos